segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Sobre as surpresas que os peixes nos trazem.



As crianças não sabiam ainda como preparar linha e anzol na vara. Tudo que sabiam sobre a arte da pesca haviam aprendido no último junho, durante a festa. Aprenderam que os peixes não se organizam de maneira aleatória. Que os mais difíceis de capturar são os que trazem as melhores surpresas.

E foi assim. Foi ao constatar a relação entre surpresas e peixes que as crianças alcançaram, com os pés na terra, o coração de Ada.

Agora queriam saber...que surpresa era essa que a menina buscava em seu voo pisciano?

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Quando os peixes se apaixonaram.



Gnosiologia, ontologias, metodologias - Em 5, 7, 5.


O pequeno Aurélio, que havia vindo do alto do morro, bem distante de rios e mares, não quis palpitar. As demais crianças pareciam não entrar em um acordo sobre como investigar a questão.


Aguti gostava da física. E sugeriu uma solução para o problema.


"Esses peixinhos
e a resistência do ar
apaixonaram-se!"


As crianças gostaram, mas ainda não se sentiam contempladas pela resposta de Aguti.


Agnes gostava mais da Biologia, e desconfiou:


"Peixe apaixonado:
espécie não descrita.
Evolução?"


Cibele, que se encantava pelo português, retrucou:

"Metáfora:
até peixes se apaixonam
na língua dos outros."


...e Nina, em seu devaneio matemático, em busca da precisão, indagou:


"Paixão de peixinho:
acrescento ou subtraio
ao peso de Ada?"


Foi quando Ivel, que gostava das aulas de Ciências Sociais, interrompeu:


"Ponto de vista:
Ada pesa o peixe ou
peixe pesa Ada?"


Aurélio, Aguti, Agnes, Cibele, Nina e Ivel já tinham uma nova brincadeira para as tardes descocupadas das férias que se aproximavam:


"Pescaremos vários peixes. Mediremos e pesaremos cada um deles até descobrirmos qual deles é capaz de se apaixonar!"

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Quantos peixes são necessários para levar Ada às nuvens?



No dia em que Ada subiu, ninguém pôde contar quantos peixes foram necessários para conduzir a menina. Estavam todos ocupados demais em suas atividades do dia-a-dia.

Agora, já virou aposta na escola: Quantos peixes foram necessários para levar Ada às nuvens?

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Nós e os animais: histórias de vida penduradas em cordel

Jessuy

Jessuy comeu um tatu. E o tatu passou a ser o animal que escolhera para contar um pedacinho de sua história. Jessuy não gosta que errem a pronuncia de seu nome, que deve ser feita como no francês 'Je sui'. É porque o nome dela é esse mesmo: "eu sou" em francês. Bem lá dentro do Brasil, dentro de Tocantins, foi assim que ditaram no cartório. Com Y e dois S. E assim ficou...


Jessuy foi a primeira a responder, sem hesitar: o animal que mais marcou a sua história de vida foi o tatu.  E logo os colegas começaram a dizer os seus animais emocionais: vaca, cavalo, periquito, papagaio, cachorro, gato, onça, jumento. Nós não queríamos ficar de fora - um recurso didático, talvez - e complementamos com os nossos animais emocionais: cigarra e joão-de-barro. Não foi assim, Antônio?


Jessuy nos contou sobre o final de semana em que não havia nada para comer. Quando sua mãe, avassaladoramente mãe, foi à caça de um animal, levando consigo um cachorro da raça 'balaio'. Balaio, pra gente daqui, é aquele cachorrinho peludinho e pequeno. Bom, entendi que balaio, em brasiliense, é poodle.


A mãe de Jessuy se perdeu na mata e voltou somente na manhã seguinte. Trouxe consigo o almoço e o jantar: um tatu. Na época, segundo Jessuy, o tatu não foi preparado no leite de coco não, mas serviu bem pra matar a fome das crianças.

Valter

Quando Valter escreveu 'onça' em sua tarjeta laranja, todo mundo ficou impressionado. Principalmente eu. Sempre gostei de histórias de onças e já quase fui atacada por uma onça imaginária em uma barraca de camping. Acho que, quando pequena, um dos livros que eu mais gostei foi 'O saci', do Monteiro Lobato. Eu delirava com a fuga de Pedrinho e o saci da tal onça.


Um dia foi com seu pai tocar o gado, que era manso. Mas pra não espantar, o pai pediu que esperasse por ali perto da mata, sentado em uma pedra. Engraçado que pra contar da onça, o Valter insistiu em invocar o pai inúmeras vezes. E sempre com muito respeito. Acho que a história é metade da onça, metade do pai.O medo que sentia do que o pai pensaria do medo que sentia da pegada da onça. E o medo que sentiu ao ver a onça. E o medo que sentia de contar pro pai, que era um pouco nervoso, que havia visto uma onça bem ali, logo ali, onde aguardava o pai "ajuntar o gado". E era uma onça preta. A onça preta encarou Valter, que não soube se ficava ou se corria, se o bicho pegaria ou comeria. E que não sabia sequer se o pai merecia saber da história. Mas correu. Espantou o gado. Deixou o pai nervoso. Não disse nada. E, no caminho pra casa, ouviu várias vezes a onça seguindo seus passos.  Irresistível a tentação de olhar para trás. Muito medo de confirmar o perigo. Irresistível. A olhadela revela: dessa vez eram só alguns bezerrinhos.

Jelson

E foi o Jelson que contou, com a cara mais lavada do mundo, que seu animal preferido é o cachorro. É. Eu e o Antônio já sabíamos que os cachorros apareceriam diversas vezes como marcas importantes nas histórias de vida. Mas essa história era um pouco diferente, e de difícil digestão para mim. O Jelson saía com o cachorro para caçar animais na mata, no interior do Piauí. Era fácil achar o rastro do veado à noite, esperar vê-lo comendo os frutos caídos no chão, decorar a sua rota, e atirar no dia seguinte. Eu fiquei triste. Mas eu não tenho essa história de vida pra pendurar no meu cordel por ter uma outra hisória de vida tão distante desta em certo momento. Então deixei essa passar sem sofrimento.

Vicente

Foi divertido quando Vicente mencionou a importância do jumento como animal de carga e transporte em sua cidade. Antônio não se conteve: "Vicente, quando uma pessoa diz que a outra é um jumento, você acha que quem está sendo xingado é o jumento ou a pessoa?".  E André logo disse: "o jumento", rememorando em voz alta a importância do animalzinho de carga no interior do Maranhão em que nasceu.
 
Isso sem contar nas historias dos papagaios que falam, que falavam, e que animavam a vida dos pequenos. E nos cavalos que eram verdadeiros brinquedos de crianças.
 
Bem...no final eu contei sobre as cigarras e tudo que a minha infância trazia sobre elas. E o Antônio falou sobre o João-de-barro. Mas a gente logo percebeu que nossas histórias eram sem graça, eram pobres. Só podiam mesmo virar poesia, porque a gente é quem põe a poesia na vida. E só.

E a noite de terça-feira seguiu assim. Muitas histórias pra ouvir. Algumas risadas. E a sensação feliz de que encontrar o Antônio pra trabalhar junto foi um presente de 2009. E a gostosura de ter agora um novo grande amigo que eu amo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

A subida de Ada.



No dia em que os peixes subiram aos céus, Ada estava na janela.
Que sorte ter treinado alçar voo em patinhas de cigarra. Não demorou muito e logo prendeu cada um de seus fios nas nadadeiras caudais dos bichinhos.

Sorte dos peixes Ada quase não pesar.Era menina demais para se agarrar ao peso da vida.

Os peixes subiram na mesmo hora em que o sol descia por entre as chapadas. E, do alto, a menina pôde acompanhar o deitar do dia.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Anemocoria

1. Ela sempre quis se soltar do dente em que morava.
2. Morava com muitas outras companheiras. Sempre presa, no mesmo lugar, sentia-se só.

- Você já notou como a gente se sente sozinha no meio de tanta gente? –

3. Imaginava tudo que faria quando...
....mas quando nunca chegava...

4. Imaginava tudo o que faria se...
...mas se não acontecia nunca...

- Você já notou como algumas palavras só existem para nos pregar peças? –

5. Conversa com as companheiras, todas presas. Nem todas se sentem solitárias. Algumas até estão confortáveis. O conforto que o que é seguro traz.
6. Queria se desprender de casa. De qualquer jeito.
7. Uma abelha voando lhe provoca esperanças. Simplesmente por existir voando.

- Você já notou como delegamos aos outros responsabilidades sobre nós que a ninguém mais cabe, a não ser a nós mesmas?-

8. “Abelhinha, tão sujinha
De pólen amarelinho,
Me carrega contigo, que eu te limpo
Todinha
Com cada um dos meus pelinhos
Há tanto que só fico aqui, que tenho me sentido muito sozinha”


9. Mas a abelha trabalha muito, pra alimentar outras tantas companheiras.
10. “Peça uma carona ao vento”, recomendou a abelha.

- Você já notou como alguns de nossos problemas nunca parecem grandes demais para os outros?-

11. Animou-se com a possibilidade de seguir os caminhos do vento. Acordou as companheiras para comunicar que partiria em breve.
12. Suavemente o vento chega. Tão volumoso, não nega carona. Levanta uma a uma, e as coloca em movimento.
13. Tão livres, tão leves, elas dançam. E dançam. E dançam.
14. Leves são seus passos, que no tempo do vento, as carregam pelos mundos.
15. De tudo experimentam. Até que, em um instante qualquer, por distração, o vento perde força. Sem suporte, elas caem.
16. Estão em terra firme. Nunca sentiram a terra antes, embora soubessem que dela viessem.

- Você já notou como frequentemente esquecemos como é que nos tornamos quem somos? –

17. No solo, ela brota e germina. Então, de repente, se vê, novamente, presa.
18. Depois de tanto viajar e conhecer, está de volta às origens.
19. Não está triste. Agora, em paz, percebe que um dia teria que, enfim, criar as suas próprias raízes.
20. Será, futuramente, a nova prisão de outras tantas.

- Você já notou que, geralmente, parece que as histórias se repetem? -





Para quem não lembra, dente-de-leão é um fruto seco, que tem o vento como agente dispersor de suas sementes. Esse processo de dispersão de sementes pelo vento é chamado anemocoria.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Ecdise.

Não era novidade que ansiava pelo dia em que descolaria o corpo crescido de suas vestes já defasadas em dourado-velho. Não que não gostasse do dourado, ou que fosse  exageradamente consumista. Queria uma roupa nova. E que mal pode haver nisso? Muitas coisas parecem estar por trás de uma roupa nova. E não há nada de errado em querer trocar de roupa quando a única que temos já não nos cabe mais. Já dizia o poeta, e interpretava a cantora, algo semelhante a isso. E é. Uma roupa que não serve mais é um passado que não serve mais. Ou o contrário disso. Esse é o ponto. Está apertado e ela já não quer mais repetir mentalmente palavras como "inspira" e "expira", a cada respiração. Quer respirar sem lembrar que respira. Naturalmente. Automaticamente. Aquela roupa já faz parte  de um passado que não tem mais cabimento. E o que não tem cabimento, obviamente, não cabe.


"Como parece apertada essa pata."


Parece é que ela já não cabe mais nela mesma. Às vezes parece mesmo que somos pequenas demais para caber tanto de nós em nós mesmas.


Exige-se esforço para separar-se do velho. Daquilo que, por tanto tempo, pareceu seu. Ou pareceu seu eu. [Há diferença?]. Daquilo que, por tanto tempo, pareceu que não descolaria do seu corpo. Do que, pra dizer a verdade, era justamente o seu corpo. [E  isso nada tem a ver com uma...essência!]. Mas os nossos corpos têm autorização pra mudar de formato.E mudam mesmo que não se queira. E era hora, agora, de deixar. De impermanecer.


Havia muito que se preparava para o grande dia. E não haveria época melhor para tomar essa decisão que o período de chuvas. As águas que descem nesse período têm o encargo de lavar o ar, o chão e as almas. Um belo banho de águas celestes casaria bem com todo o resto do ritual. Seria um verdadeiro rito de passagem.
A começar pela música. Muitos companheiros apareceriam cantando nesta ocasião festiva. E não a toa.
Parecem estar todos em grande celebração, querendo trocar juntos as suas vestes. Troca-se uma muda de roupa, por um par de asas! Faz-se a muda de uma roupa por uma roupa de muda que voa.


Suas novas roupinhas não tardam. E que engraçado! Parecem brotar delas mesmas. Parecem fruto de um severo investimento na arte do voar. Trazem asinhas delicadas com as quais poderão, mesmo que por um curto espaço de tempo, sair do chão.


E faz pouco tempo que vieram do escuro da terra. O céu, as árvores e as cores são, ainda, vistos com as lentes das novidades. Essas lentes que com tanta facilidade tornam-se inativas e param de perceber a beleza das coisas.


Agora, ela faz assim: ao ganhar sua nova mudinha de roupa, canta estridentemente, celebrando as cores, as árvores, os céus e as chuvas. Chuvas que caem lavando sua roupa antiga, que secará  ao sol depois, bem douradinha. E servirá de brinquedo para as crianças. Mas somente para aquelas crianças que ainda podem brincar na rua. E somente naquelas ruas em que ainda existam árvores.

Estridentemente
           em suas cascas douradinhas
 celebram a chuva



quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Haikais para sisos.

Sinto que já estou bem. Posso mudar o rumo da prosa. Mas, pra fechar bem fechadinho, haikais sisísticos.

I.
Em novo formato
passada a anestesia
mastigo vento.

II.
Sopa e sorvete
extraído o juízo
menos cinco dentes.

III.
No caso dos sisos
vale fazer pedidos
pra fada do dente?

IV.
Fala-se menos
de boca costurada
sonha-se mais.

V
Bochechas gordinhas
agora sem juízo
descansa a boca

VI
Terceiros molares
são caprichos dos genes
e dos dentistas.

VII.
Sisos, nos dai hoje
o atestado médico
de cada dia.

VIII.
Compressa de gelo
funciona só pra bochecha
pro coração, não.




quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Retiro

Da boca, o juízo.
Do armário, roupas velhas.
Da estante, o que junta poeira.
Do caminho, algumas pedras.
Do presente, algum passado.
Do passado, algo de bom.
Do algo de bom, retiro a saudade.
- aquele saudade que muda a cor das memórias.
Das memórias, retiro o que presta. E o que não presta, jogo fora.
Retiro o apego, a angústia, o conflito.
E, no final, me sinto culpada.
Retiro a culpa, que não serve pra nada.
E vou retirando, sem retirar o que disse.
Depois fico leve, levinha da silva e
retirando a escrita, bato em retirada!

Atestado médico.

Há muito não ficava assim: sem trabalhar e com a obrigação do repouso. O repouso por obrigação, de início, parece enlouquecedor. E depois ele vai acordando o que a gente deixa adormecer no dia-a-dia do dia-a-dia. É o dia-a-dia que é, na verdade, enlouquecedor. E isso pode parecer clichê, mas eu juro que só me dei conta agora.

É porque tem vários tipos de se dar conta. Tem o se dar conta no pensamento, o se dar conta no corpo, o se dar conta na alma, o se dar conta da boca pra fora.... O se dar conta holístico tem também, e é esse que me ocorre agora. Na alma, no corpo, na mente, na boca pra fora e pra dentro, depois de dias deitada, toda instância de eu possível percebeu que um atestado médico usado com louvor pode ser mágico. Eu falo "com louvor" porque aquele atestado médico que te permite sair de casa e dar um rolé, beber, fumar e namorar, pode ter seus mil encantos, mas não funciona como um retiro.

Enfim...hoje me sinto no pós-retiro. Voltei a trabalhar e já até estou desfilando minhas bochechas gordinhas por aí, levemente esverdeadas, diga-se de passagem. Eu que já ando com a pele amarelada por execesso de sucos de cenoura-beterraba-e-alguma-coisa-diferente-da-geladeira, tenho o diferencial de desfilar uma face verde-amarelada por aí esses dias. Se você tiver sorte e me encontrar, vai ver que coisa linda. Quase uma devota da bandeira.

Há tempos não dormia tanto. Há tempos não me dedicava à arte de espiar a chuva da janela com tanta devoção. Há tempos não ficava tão calada mordiscando os passos em falso que dei nos últimos muitos anos da minha vida. Há tempos não ficava tão calada dando pinceladas de tinta colorida em todo o modelo de vida que adotei nos últimos poucos anos da minha vida. Há tempos não parava pra pensar que ainda me falta muita vida pra me preocupar com pincéis e passos em falso. Há tempos não ria tanto, e justo agora que  não podia rir. Há tempos não me sentia a filhinha da mamãe que merece sopinha fria na cama. E a irmã mais velha que ganha um purê em pleno feriado. Há tempos que há tempo que há tempo que há tempo. E há muito tempo ainda, e provavelmente, muitos retiros. Mas os sisos eu já tirei todos. No próximo, quem sabe, vou ver baleias na Patagônia.

Se eu for ver baleias na Patagônia, eu vou chorar. E chorar foi o único item do roteiro-do-retiro que eu não obedeci. Até tentei assistir uns filmes tristes, mas não rolou. Ah!!! Mas....vendo baleias, tudo muda. Muita frieza não chorar vendo baleias. E, até onde me lembro, não sou lá dessas pessoas que se pode chamar de fria.

É. O atestado com louvor acabou. Agora vou usar os últimos dias de atestado para me encantar com a vida de quem pode sair pela noite durante a semana.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Haikai

De início parece simples demais. E simples demais, muitas vezes, pode parecer pobre...ou, na melhor das hipóteses, nonsense.

Depois a gente desmistifica um pouco as coisas, o simples demais se torna elaborado. Aos pouquinhos a gente vê que menos é mais. E foi assim comigo e o Haikai.

De início, eu sentia falta do excesso de palavras. E agora eu penso que muitas vezes o excesso de palavras é que gera a falta. Agora, no meu encantamento cínico pela des-palavra, eu admiro os haikaístas.

5, 7, 5. E nessa contagem, que não deve extrapolar o 17, uma sugestão. Uma imagem capturada pelas lentes das palavras. Nada além disso, e tudo além disso. Um encantamento de vida que tem um quê de impermanência, de transformação. Um momento capturado em pequenos versos. Sempre, portanto, marcado por um kigo, que é um elemento que remete, geralmente, a uma das quatro estações do ano, mostrando que nada é fixo. "Viver o presente, buscar a essência, e valorizar a contemplação".

O haikai  "mais omite do que diz". E o resto é sentir. E o original japonês mesmo diz que não são necessários títulos ou rimas: elementos que geram um certo conforto... ["Ah...eu coloco um título aqui e o meu poema, que não tinha sentido, passa a ter..."].

Tá. Os poetas brasileiros não seguem nada disso a risca...e às vezes colocam título, e alguns até rima. E fica bom também. Ó:

Engano amigo
tenho a impressão
que a luz vem comigo
(Alice Ruiz)

Dia de Finados
Formigas carregam
Pétalas que caem.
(Jorge Lescano)

Pintou estrelas no muro
e teve o céu ao
alcance das mãos
(Helena Kolody)
 
Confira,
Tudo que respira
Conspira.
(Paulo Leminski)

O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, a ruga.
(Guilherme de Almeida)

Namorando a lua

morreu na madrugada
o canto do inseto.
(Teruo Tonooka)

Ainda sobre o escafandro.

Continuei pensando.
Essa metáfora, não sei. O escafandro não tem como objetivo propiciar que você conheça novos lugares? Se sim, então ela não é boa para o filme.

Independentemente disso, presto uma homenagem. Do Liniers a Jean-Dominique Bauby, intermediado por mim.


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Escafandro, borboletas e culpa.

Ainda na saga-siso.


Ontem eu não podia rir. Tanto quanto não posso hoje.
Engraçado perceber como a gente ri muito mais do que imagina.
Na hora de alugar filme me programei para assistir filmes tristes. Pensei em todos aqueles títulos que eu sempre deixei pra depois porque não queria chorar. Encontrei vários deles pelas prateleiras  e trouxe pra casa.

Aí eu assisti  "O Escafândro e a Borboleta". 

Passei quase duas horas assistindo esse filme, que é narrado em primeira pessoa. É sobre um cara que após um AVC narra a história de sua vida, utilizando apenas um olho. É. Um olho. O cara pisca, pisca, pisca e as pessoas extraem palavras das piscadelas. Tipo um "código morse para o olho".  Uma coisa deprimente. Eu não achei bonito, não achei uma lição de vida. Achei uma lição de morte. E sabe o que é pior? Eu ri. Justo quando eu não podia, eu ri.

Não é que haja graça em ter um AVC, muito menos em ficar paralisado numa cama, locked-in.
Mas...como não rir? Parece que aprendemos mesmo a ser palavras. Somos tão iluministas, e tão iluministas, que viver de palavras parece que é super ok. De palavras e de idéias.

Me lembro daquela idéia que a gente discute em teorias do conhecimento, a respeito de cérebros boiando em cubas ligados a eletrodos como sendo seres humanos. Bom, se os eletrodos nos trouxessem sensações e pudéssemos imaginar que temos corpos, até vá lá...mas o Jean-Dominique Bauby era o único cérebro em uma cuba e sequer podia ter sensações. E as pessoas acham isso....poético.

Argh. Achei um desaforo esse filme. Um filme para iluministas sádicos. E nisso, sim, há graça. Acho graça que aluguei o filme pra chorar, e não tive a menor vontade de chorar. No final do filme, morri de culpa por não ser solidária a Jean-Dominique ou a qualquer um que esteja locked-in. Aliás...que que é que tava preso e o que é que prendia? Jean-Dominique era só palavras mesmo, presas no escafandro, que era aquele corpo quase inútil...que parecia mesmo servir como uma série de eletrodos funcionais da imagem, do som e do pensamento. De fora pra dentro. 

É. Pensando bem, acho que achei graça mesmo foi na culpa. Na culpa que senti porque não valorizei a metamorfose de Jean-Dominique Bauby em palavras. E porque não valorizei o seu esforço em narrar a sua vida através de piscadelas, que, elas mesmas, tornam sua vida muito mais interessante, aos olhos dos outros, do que a sua própria vida enquanto jornalista. [E nesse mundo de egos estufadinhos acho que achei engraçado imaginar como seria surpreendente se ele tivesse escrito, enquanto locked-in, um Thriller, ou um romance-erótico, ao invés de uma autobiografia].

Agora, ainda tô me sentindo culpada por não dizer que a fotografia é maravilhosa (e realmente é!) ou que fazer um filme que seja todo em primeira pessoa é uma tarefa difícil...mas...vou me eximir de culpas. Porque eu que tô inchada, que sou dramática, que tô quase me sentindo em um escafandro porque não posso rir, falar e comer direito. E eu que sou incoerente e sinto vontade de terminar agora dizendo com palavras que queria um mundo com menos palavras. E mais gosto. Mais tato. Mais corpo. (Ainda que sem palavras talvez não existisse tato, gosto e corpo...mas isso é pruma outra conversa..)

domingo, 1 de novembro de 2009

Sidarta.


Sei pensar. Sei esperar. Sei jejuar.

Sidarta teria se saído muito bem na recuperação pós-extração dos sisos!

I. Da remoção



Eu investi muita matéria e energia na construção dos meus sisos. O material que eu não utilizei pra formar dois outros dentes definitivos (e por isso dois dentes de leite moram ainda em minha arcada) eu devo ter alocado lá, nos sisos. De repente, assim, olhando a radiografia, resolvemos nos adiantar em relação ao futuro: você pode vir a ter dores na coluna por conta de sisos mal posicionados! Então, vamos extraí-los! Todo aquele investimento de cálcio, paf! Para nada. Mas tudo bem...podemos sempre brincar de Poliana e procurar o lado bom da coisa.

Aí no começo você vê realmente o lado bom. A começar pela injeção de tropofol - o mesmo remédio do finado Michael. Aliás...eu tive medo desse negócio. Eu li na wikipedia que é um hipnótico. Com minha casa oito regida por planetas do inconsciente, amante dos segredos e dos mistérios, já me adiantei  e perguntei ao médico se eu corria o risco de falar inconscientemente todos os meus segredos. Pergunta para qual obtive a resposta "Todos não, talvez um ou outro". Gelei.

Ao final da cirurgia fui acordada com a notícia de que eu havia falado um pouco, e deixei o dentista assustado.


"Fico impressionada com essa história de separação"


E o dentista, preocupado, achando que seria o momento de um desabafo inoportuno:


"Que separação, Marina?"


E eu...


"A separação entre os neuroreceptores de dor e de tato, porque eu estou sentindo você mexendo aí, mas naõ dói nada, nada..".

Bom..pelo menos não revelei nenhuma grande segredo, além do fato de eu ser meio...nerds?!

Enfim...o tropofol me proporcionou um bem-estar incrível. Minha mãe disse que nem a minha analista ia acreditar se me visse tão meiga, tão carinhosa.

Entrando, então, nessa linha psicanalítica, decidi imaginar que a extração de sisos poderia funcionar como um retiro. Devo evitar falar, fazer esforço físico. E todo mundo precisa ficar um tempo sem falar. E sem se esforçar também. Achei que viesse a calhar.


E pensando ainda mais positivamente, tem os dias de atestado. É...tem os dias de atestado. Isso quer dizer que eu não vou acordar 6 da manhã pra trabalhar e voltar as 11 da noite do trabalho.


Tem também o lance da gente saber, de experiências anteriores com os nossos amiguinhos, que nessa ocasião podemos viver à base de sorvete.

A parte ruim parece ser o fato de que vou me assemelhar, na melhor das hipóteses, a uma pêra. Mas e daí? Faz parte do retiro ficar uns dias sem aparecer pra sociedade. E quem sabe, se eu conseguir me elevar, posso usar esse momento pra cultivar o desapego da imagem juvenil intocada e lembrar que: "Isto também passará". [Tanto a imagem juvenil quanto o formato pêra...]


Mas isso não é nada.


Que tipo de workaholic consegue ficar deitada, com três travesseiros, o dia inteiro?

Já se foram 6 dvds e um livro inteiro.
Já até assisti Amelie Poulain.
Já ensaiei a sanfona.
Já estou há 72 horas nessa condição, que, pra mim, é a própria miséria.

Descobri, por exemplo, o que no fundo eu já sabia: eu nem gosto tanto de sorvete assim.


Já transformei dormir em brincar, pra brincar de sonhar e registrar o sonho. Já sonhei de tudo e o tempo não passa.

Já enjoei de todas as opções moles e frias que a geladeira oferece: pastinhas árabes, iogurtes, sucos, sorvete, doce de leite, goiabada. Eu quero um pão com queijo e um café quente.

Já subverti toda a minha moral interna em relação a remédios e sinto as paredes do meu estômago corroídas pelos antibióticos, antiinflamatórios e dipironas. (...mas é claro que eu ainda tô tomando arnica, pra ter a falsa sensação de que não sou tão alopática assim...).

Já recebi algumas visitas, necessárias pra não me sentir sozinha, mas somente aquelas que garantam que minha auto-estima não vai mudar de lugar. Porque olha....eu estou muito feia. Feia como eu nunca tinha estado na vida.

Já exerci minha cidadania eletrônica: li uma série de blogs. Já mexi no orkut de quem conheço e não-conheço. Mandei vários e-mails. Até abri uns forwards que estavam há muito tempo parados na minha caixa de entrada.


Ainda me lembrei que amanhã - no dia dos finados - meu pai faz aniversário. E nós contratamos uma banda. Mas...pra que serve uma banda quando você é uma pêra de cama??? A banda é pra gente dançar, porque pra ouvir música....ah!!! Isso eu também fiz nessas 72 horas. Todos aqueles mp3 que ainda não me enjoaram eu já ouvi. E também já passeei pela lastfm de uma galera.


Agora tô na fase de controlar a revolta: como eu pude gastar tanto dinheiro pra ficar inchada na cama, sem poder comer, beijar, falar, e sair? Só porque estava escrito na radiografia? E nem dores eu tinha! ... E olha que eu escolhi tirar esses 5 dentes, e me respeitaram. Imagine que tem gente que quer tirar dois dentes e sai sem nenhum? Eu deveria estar feliz, isso sim.