sábado, 19 de junho de 2010

Sobre moluscos I


Não há terapeuta ou analista que dê jeito.

Dura demais por fora, frágil demais por dentro.
E sua maneira altamente dispendiosa de lidar com os incômodos.
Proteção demais contra o que parece ser o mundo, evitando deixar a mostra a qualquer um seu interior frágil, delicado, sensível.
Proteção cara; muita matéria e muita energia devotadas ao trabalho de enconchar-se rigidamente.
Para cuidar de sua organização interna resguarda-se de maneira quase hermética. E funciona sempre assim. Seus problemas não são devolvidos ao meio. Não são regorgitados ao público. Não adquirem formato poético, ou musical.
São todos trabalhados cuidadosamente em seu interior.

E não é pra menos.
A organização interna nossa de cada dia é coisa que se deve cuidar direito. E, para ela, os livros de auto-ajuda são deliciosamente desnecessários.
Sem essa de expurgar os demônios, ou de gastar rios de dinheiros em sessões de falatório.
Parece que nasceu sabendo que os incômodos são sempre internos. E que o outro existe mediante e em continuidade com o "eu'. Que o outro, ela constoi - enquanto constroi a si mesma. Esse outro ela só pode apreender quando ele está exatamente em seu interior. Então o incômodo com o outro só pode ser, em última instância, um incômodo consigo mesma.

Foi sem notar que aprendeu, ao longo de toda a sua onto-filo-genia, a guardar um incômodo sem transformá-lo em câncer. E aqueles que sugerem que os problemas devam ser deixados de lado a reprovariam na certa. Ela não deixa incômodos de lado. Cada um deles é irremediavelmente transformado em pérola.

Está, entretanto, em alerta permanente: há o eterno grande risco de que surja, de algum lugar, um alguém em busca de problemas alheios. Esses sempre vêm. E violentamente destruirão toda a sua rígida armadura proterora, em busca de seus incômodos perolados. Nobres incômodos. Então, seu interior, mole, não poderá mais contornar futuros incômodos. Se der sorte, seu esqueleto rígido restará misturado à areia, e talvez seja devolvido à praia por uma maré de sorte. Sobre as areias da praia encantarão crianças. E alguns adultos. E casais de namorados, que coletam conchinhas procurando dar vazão a tanto gostar.


Fatos da vida cotidiana, nada mais.

O que aprender com moluscos:

I. Fabricar a dureza, de dentro pra fora.
    Casca dura, miolo mole.
    Esse ensinamento fica para a vida toda.
    Como podemos construir uma casca dura? Uma concha? E continuar moles por dentro?
[Hay que endurecer, pero sin perder la ternura!]

II. Confeccionar pérolas a partir de alguns invasivos incômodos.
Como tornar cada um de nossos incômodos tão 'nobres'?.

III. Carregar em si o que chama lar.
Como carregar nas costas a própria casa, casa-concha,limite do ser, que protege, porém distancia.

Casa-caixa.

IV. A tranquilidade de caracolar vagarosamente por entre o destino.

V. Há que se conchar.

1) Eu concho.
2) Tu conchas.
3) Ele concha. Ela também.
4) Caracol concha.
5) Ostra concha.
6) Pensamento concha?

Incômodo de ostra
não vira lupo, nem câncer
vira pérola

Problema de ostra
pequeno grão de areia
que o manto encobre

Caiu um grãozinho:
na ostra uma pérola,
na menina um brinco.

Conchinhas na areia
pérolas no cordão
morreu o bichinho.

5 comentários:

  1. da concha, ouvi as reflexões. carregam todo o mar, profundidade e beleza, do ser, do "conchar".
    beijo,
    Maria Cláudia

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  2. achei bonito demais esse trem de biologia. Agora sim, as coisas fazem mais sentido, são apresentadas poeticamente (talvez como deveriam ser). Minhas professoras de biologia eram tão bonitas, mas tão rígidas que fazia sua ciência ríspida e decepcionante... ai ai. aulas de vidologia...

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  3. de que adianta ensinar biologia sem se deixar aprender com ela?
    bonito demais da conta, marina, o que voce faz com isso tudo.

    eh tudo ATP e nossas varias estrategias de como usa-lo...

    e amei esse "cartaz" sobre a conservacao dos nossos blogs! posso compartilhar la no meu tambem?

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  4. eu às vezes me concho pra me proteger, mas não sei se dessas conchadas vai surgir alguma pérola. tenho uma impressão reversa: ao me desproteger, mais pérolas hei de ser, de ver. mas se eu me conchar para, em vez de me proteger, ficar costurando ideias, pensamentos bonitos, técnicas manuais e literárias, talvez eu produza alguma coisa, alguma areiazinha brilhante. adorei isso, sério, esse negócio de conchar!

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