Não era novidade que ansiava pelo dia em que descolaria o corpo crescido de suas vestes já defasadas em dourado-velho. Não que não gostasse do dourado, ou que fosse exageradamente consumista. Queria uma roupa nova. E que mal pode haver nisso? Muitas coisas parecem estar por trás de uma roupa nova. E não há nada de errado em querer trocar de roupa quando a única que temos já não nos cabe mais. Já dizia o poeta, e interpretava a cantora, algo semelhante a isso. E é. Uma roupa que não serve mais é um passado que não serve mais. Ou o contrário disso. Esse é o ponto. Está apertado e ela já não quer mais repetir mentalmente palavras como "inspira" e "expira", a cada respiração. Quer respirar sem lembrar que respira. Naturalmente. Automaticamente. Aquela roupa já faz parte de um passado que não tem mais cabimento. E o que não tem cabimento, obviamente, não cabe.
"Como parece apertada essa pata."
Parece é que ela já não cabe mais nela mesma. Às vezes parece mesmo que somos pequenas demais para caber tanto de nós em nós mesmas.
Exige-se esforço para separar-se do velho. Daquilo que, por tanto tempo, pareceu seu. Ou pareceu seu eu. [Há diferença?]. Daquilo que, por tanto tempo, pareceu que não descolaria do seu corpo. Do que, pra dizer a verdade, era justamente o seu corpo. [E isso nada tem a ver com uma...essência!]. Mas os nossos corpos têm autorização pra mudar de formato.E mudam mesmo que não se queira. E era hora, agora, de deixar. De impermanecer.
Havia muito que se preparava para o grande dia. E não haveria época melhor para tomar essa decisão que o período de chuvas. As águas que descem nesse período têm o encargo de lavar o ar, o chão e as almas. Um belo banho de águas celestes casaria bem com todo o resto do ritual. Seria um verdadeiro rito de passagem.
A começar pela música. Muitos companheiros apareceriam cantando nesta ocasião festiva. E não a toa.
Parecem estar todos em grande celebração, querendo trocar juntos as suas vestes. Troca-se uma muda de roupa, por um par de asas! Faz-se a muda de uma roupa por uma roupa de muda que voa.
Suas novas roupinhas não tardam. E que engraçado! Parecem brotar delas mesmas. Parecem fruto de um severo investimento na arte do voar. Trazem asinhas delicadas com as quais poderão, mesmo que por um curto espaço de tempo, sair do chão.
E faz pouco tempo que vieram do escuro da terra. O céu, as árvores e as cores são, ainda, vistos com as lentes das novidades. Essas lentes que com tanta facilidade tornam-se inativas e param de perceber a beleza das coisas.
Agora, ela faz assim: ao ganhar sua nova mudinha de roupa, canta estridentemente, celebrando as cores, as árvores, os céus e as chuvas. Chuvas que caem lavando sua roupa antiga, que secará ao sol depois, bem douradinha. E servirá de brinquedo para as crianças. Mas somente para aquelas crianças que ainda podem brincar na rua. E somente naquelas ruas em que ainda existam árvores.
Estridentemente
em suas cascas douradinhas
celebram a chuva
"Nasci com uma sina de cigarra
ResponderExcluirAonde eu chegar tem farra"
Tô te vendo, bonitona!
;*