Eu tenho que ensinar isso de vez em quando. Pelo menos uma vez por ano em alguma série.
E eu digo: "imaginem se não existisse o processo de decomposição, teríamos que conviver com todos os cadáveres de todos os seres vivos que já existiram no planeta Terra."
E ele me pergunta, em seus 10 anos de idade: "Professora, por que quando as pessoas morrem e vão se decompor as pessoas choram?".
E depois eu dou essa aula novamente em outra turma. E as crianças divergem de mim. Não acreditam que os ossos também sofrem o processo de decomposição.
Mas eu ensino que sim, que demora muito mais, mas que os ossos também se decompõem.
E ele, em seus 11 anos, em alto e bom som: "Essa hora meu pai já foi todo decomposto então, ele morreu já tem uns 4 anos. Deve ter sobrado só osso."
Eu fico sofrida quando escuto essas coisas. E passo por elas pensando: sabe-se lá como é o lado de lá do meu aluno. E volto a pensar sobre a morte. E sobre os pavores que a morte provoca.
Nota mental de 10.03: aula de ciências = nó na garganta.
Por muito tempo eu estive convencida de que achava triste o viver. E eu sequer tinha duas décadas de nascida quando confrontei pela primeira vez esse torpor. Achava que era a vida que era triste.
Mas não. A vida nunca foi triste.
O viver, esse de passar entrecortando a vida que já está aí há tanto, esse viver, que não é perene, esse sim. Este pode ser triste. E por muito tempo foi ele quem me causou tantas náuseas.
Atribuía, precocemente, meu desconforto de viver à ausência de sentido que achava que a vida deveria ter.
E ouvia de meu pai que passarinho algum procura sentido em viver, mas todos vivem. Voam e cantam. Comem e dormem. Nessa época, tão remota, não havia compreendido ainda a grandeza dos pássaros.
Não faz muito que percebi que a vida é muito maior que a minha existência, e que mesmo assim, isso não diminui o sentido do meu viver. Estou a cruzar o caminho da vida há vinte e poucos anos. Pouco o suficiente para aceitar pacificamente o despropósito da vida. O acaso, a contingência.
Não é desconfortável pensar dessa forma, e tenho sempre que me policiar para lembrar que as dificuldades e o peso da vida também não são dela própria, senão meus. Afinal, a vida, depois que eu terminar de passar por ela, vai ser a mesma. Ela simplesmente acontece.
Outro dia eu conheci uma plenitude bonita. Era sol e tinha um lago. Pensei em tudo que fiz e venho fazendo. E nos planos que ainda me faltam fazer. E nos que eu já fiz e estou esperando não-concretizar para sobrar espaço para fazer mais. E nos que eu quero concretizar de verdade ainda.
E aí tive o prazer de conhecer o medo de morrer.
Nada disso extingue a minha melancolia.
Ele insiste em dizer pelo telefone que minha voz é triste.
E outrora já me falaram que embora doce, meu semblante é tristonho.
Mas não. Não é tristeza.
Minha voz não é triste.
Meu semblante não é tristonho.
É o meu jeito de perceber a vida que me pinta de um jeito que para alguns remete à tristeza...mas que em última instância é só uma humildade perante o resto, que é o todo, porque o resto, do todo que eu inventei, sou eu.
Me lembrei de quando li o Borges dizendo que a angústia de morrer é saber que a vida vai continuar sem você. Do ponto de vista filosófico, talvez isso seja uma ignorância. Mas do ponto de vista da minha intuição, é isso. A vida, desde que se iniciou, sempre continuou.Vai continuar sem mim. O chato é que parece que ela não nos dá tempo de fazer quase nada.
Pensar isso tudo me faz ter saudade de mim.
E penso em Mersault, quando Camus o fez ter medo da morte pela certeza que a ele ela traria, a certeza de que sua vida foi consumida sem ele. Me remeto a Mersault e tenho medo. E aí antes de dormir, procedo ao ritual que adotei mais recentemente: ter a certeza de que venho consumindo doses exageradas de um viver propriamente meu, todos os dias.
"Know that one day I must die/ I'm alive..."
aula de ciências sempre traz tanta coisa à tona, né?
ResponderExcluirpra mim o medo de morrer também foi uma descoberta, gostosa e assustadora. gostei de "saudade de mim". quando ela vem apertar, vem também uma alegria - deve ser o que chamam por aí de amor próprio, ou amor à vida, ou só amor. e eu também acho essa humildade perante o todo libertadora - se precisamos de algum sentido, que esse sentido seja a falta dele. e que a vida se resuma então em uma boa quantidade de alegrias e prazeres.
né não?
beijos, linda!
a melhor coisa da partida dos seus - já não mais seus - cisos foi a chegada do seu blog. adoro seus escritos, mesmo.
ResponderExcluirno fundo, nu fondo, a gente só quer mesmo a leveza. :)